domingo, 27 de dezembro de 2009

Trecho da peça Escrevinhando

(Um poeta de rua atravessa a praça. Traz alguns textos com seus poemas. Cerca um transeunte e tenta vender um exemplar).

Poeta – Olá, tem um tempinho pra conhecer um de meus poemas? (O transeunte, apressado e impaciente, desvia-se e vai embora.)

Gari (Para o poeta) – Ei, moço, pode lê um verso pra nóis?

Poeta – Com muito prazer.

(O poeta escolhe um poema e declama-o com uma eloqüente e bela performance.)

Poeta - O Mundo é da palavra.
Pela palavra se educa,
Pela palavra se corrompe,
Se condena
Ou absolve.

A palavra mostra e esconde,
Flagra e deflagra.

É a meretriz que se deixa manipular
Pela ousadia do aventureiro,
Pelo romantismo do poeta,
Pela perversão do herege.

É a infiel que se deixa abusar despudoradamente.
Mas leal consigo mesma testemunha contra
Ou a favor de quem a emprega.

E adverte: estou a seu dispor,
Use-me como lhe aprouver,
Mas lembre-se, não poderá fugir
À responsabilidade de sua ação,
Serei anjo ou algoz
Da sua criação.

(O gari e o mendigo aplaudem, entusiasmados)

Gari – Que verso bonito, moço.

Mendigo – Uma belezura, uma belezura.

(Poeta agradece e se afasta)

Gari – (Segredando para o mendigo) – eu não entendi nadica de nada, e ocê?

Mendigo – Eu, menos que ocê.

Gari – Dá um desconto pro moço, deve de tá aprendendo a escrevinhá. Nem rima tem no versinho do coitado.

Mendigo – Pois não é?

Gari – Óia, acabo de me lembrar de um verso que meu pai feiz quando eu era criança pequena. Escuta: Lá detrais daquela serra, rola tora, rola pinheiro, quem não sabe fazê verso que não estorve os companhero.

Mendigo – Eita, isso é que é verso!

Gari – Meu pai é que era poeteiro de verdade. Lembrei de outro, esse é procê: Lá detrais daquele morro, tem um monte de taquara, faiz um meis e mais um dia, que o João Batista não lava a cara.

Mendigo (Aplaudindo) – Bonito, bonito.

Gari – Peraí que lembrei de mais um: Lá detrais daquele morro, tem um monte de bambu, faiz um meis e mais um dia, que o João Batista não lava ...

Mendigo (erguendo a mão) – Epa! A carta. Vamos escrevinhá a carta.

Gari – A carta. Ta certo.

(O gari ajoelha-se no chão e estendendo a improvisada folha num canto do banco, se prepara para escrever.)

Gari - Manda lá, que tô pronto. E inspirado por demais da conta!

Mendigo (Respirando fundo, emocionado.) - Então, escrevinha aí: Quirida Firmina...

Gari - Firmina? Virge Maria, que nome mais feio! E ocê ainda teve corage de mangá do meu nome. Quem é a tar fulana?

Mendigo - É minha noiva, ora essa! E fique ocê sabeno que ela é a moça mais bonita lá da minha terra.

(Agita um retrato ¾ na cara do gari.)

Mendigo – Oia, espie bem que moça facera, e ajeitada de feição.

Gari (Assustado.) – Cruiz-credo! Fico só imaginando a cara das outra... Mas, mi diga aí, cumé que um João-ninguém esmolento, que dorme nos banco de praça, e veve ao Deus-dará, tem uma noiva?

Mendigo (Ajeitando-se no banco, faz uma breve pausa como a puxar pela memória.) - Já faiz um tempinho. Nóis namoró cinco ano. Eu trabaiava na roça lá no norte, ela fazia tricô pras criança que nascia na vizinhança. E como nascia criança, Firmina quase não vencia as incomenda...

Gari – Na roça é ansim memo, não tem muita distração, as famía vai cedo pra cama e daí, virge, como nasce criança!

Mendigo – Como eu dizia, nois namoremo cinco ano, e nesse tempo eu ajuntei as economia e ergui a nossa casinha. Daí marcamo a data do casório...

(Neste ponto o mendigo faz uma pausa, desfaz o nó na garganta.)

Gari (Ansioso) - Intão?

Mendigo - Intão sucedeu uma calamidade.

(Nova pausa, mendigo tenta conter a emoção.)

Gari - Desembucha, home!

Mendigo - Dois dia antes do casório caiu uma chuvarada e...

Gari - Nem precisa de terminá, que já adivinhei. A enxurrada carregó o barraco de oceis!

Mendigo - Não.

Gari - Já sei! A noiva se moiô, ficô ingripada e com chiadeira de peito...

Mendigo - Não foi nada disso, rapaiz!

Gari - Intão desembucha de uma veiz!

Mendigo - Foi um aguacero danado, os raio riscava o céu de tudo quanto é lado. Até que um raio pegó de cheio a nossa casinha. A meia-água ficô que era só tição. Óia só o que sobrô...

(Ele mostra um pedaço de trinco enferrujado.)

Gari (Sussurrando, cabisbaixo) - História bem triste.

Mendigo - Pois é, amigo... Intão eu tive que dexá a Firmina lá no norte e vim pra cidade grande pra mor de ganhá dinhero pra fazê outra casinha. Ela ficó isperano, tadinha...

Gari - E foi quando?

Mendigo - Faiz uns cinco, tarveiz seis...

Gari – Seis meis?

Mendigo - Ano. Seis ano.

Gari - Ah, intão isqueça, home. Essa hora, ela já casó cum otro.

Mendigo - Num casó, não! Ela jurô de pé junto que ia me isperá. Inté disse que ia passá o tempo fazeno tricô pros cinco fio que nóis combinó de tê. Mais agora dexa de prosa que eu quero vê ocê escrevinhando!

Gari - Tá bão, vamo lá. Que tar eu escrevinhá mais ou menos ansim: Querida Forminha...

Mendigo - É Firmina, home!

Gari – Tá, que seja... Já faiz um bocadinho de tempo que não mando notícia, mais não si preocupe, ta tudo bão por aqui. Vai fazeno aí o tricô pros minino, que pro ano que vem eu tô de vorta, e com o dinhero pra erguê de novo nosso barraco. Uns bejo e uns abraço pra ocê, minha fofura... Tá bão ansim, ou prefere que eu mude arguma coisa?

Mendigo - Um tantinho curta, mais serve.

Gari - Ocê que manda. Si quisé eu posso incumpridá mais. Escrevinhá, pra mim, não é pobrema.

Mendigo - Intão manda aí. Escrevinha isso que ocê falô e ajunte mais arguma coisa.

Gari - Dexa cumigo. Tua noiva nunca recebeu nem vai recebê carta mais bonita que esta.

(O gari começa a escrever. Enquanto espera, joão-ninguém, digo, João Batista vai praticando seu atual ofício).

Mendigo - Minha senhora, um trocadinho aqui pra esse pobre home que teve a casa incendiada por um raio. Meu senhor, por caridade, quarqué quantia serve... Deus te pague.

(Enquanto isso, o violeiro se aproxima, com mais uma canção.)

Violeiro – Fiz uma casinha branca lá no pé da serra pra nós dois morar,
Fica perto da barranca do Rio Paraná.
O lugar é uma beleza, eu tenho certeza você vai gostar,
Fiz uma capela bem do lado da janela pra nós dois rezar.

Quando for dia de festa você veste seu vestido de algodão,
Quebro meu chapéu na testa para arrematar as coisas do leilão.
Satisfeito vou levar você de braços dados atrás da procissão,

Vou com meu terno riscado, uma flor do lado e meu chapéu na mão.
Vou com meu terno riscado, uma flor do lado e meu chapéu na mão.

Violeiro (dirigindo-se à platéia) – Se a vida na cidade já é difícil pra quem teve a chance de estudar, pensem naquela criatura que não sabe escrever o próprio nome. Sem educação, o indivíduo fica sem eira nem beira, é marginalizado na sociedade, e assim, pontes, viadutos e marquises viram tetos, favelas crescem em número e extensão, e aumenta a criminalidade.

(E o violeiro continua com sua música, enquanto o mendigo cochila, acorda, olha para o gari e volta a cochilar. E isso se repete várias vezes. Até o violeiro olha o gari e boceja algumas vezes. Então, meia hora mais tarde...).

Gari (Dobrando a folha de papel.) - Pronto. Agora é só entregá pro cartero.

Mendigo (Sobressaltado, vasculha os bolsos de suas vestes) - Espere aí que vô te dá o endereço da Firmina.

Gari - Nem precisa, home. Os cartero são uns bicho danado de esperto, eles acha quarqué um só pelo nome...

Mendigo – É memo?

Gari - Óia só que sorte a tua, aí vem um cartero, bem na horinha. Moço, faiz favor...

(O rapaz de uniforme amarelo se aproxima.)

Gari (Entregando o papel.) - Faiz favor, é uma carta pra noiva do meu amigo, aqui.

Carteiro - Mas, cadê o envelope com o endereço?

Gari - Magina, nem carece, que a moça não é entojada, não. Agora ande logo que a Forminha tá esperano.

(Balançando a cabeça, o carteiro se afasta com o papel na mão. O gari apanha a vassoura e a pá e volta a cantarolar e assoviar).

Gari – Moro no Boqueirão,
Se eu perder o buzão
Que sai agora às onze horas...

(Do outro lado da praça (palco), o carteiro pára e, curioso, desdobra o papel e lê as palavras ali rabiscadas):

José Genivardo Felizbrino de Jesus
José Genivardo Felizbrino de Jesus
José Genivardo Felizbrino de Jesus
José Genivardo Felizbrino de Jesus
José Genivardo Felizbrino de Jesus.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Vídeo da peça